sitemap VIII Encontro de Linguística de Corpus
 
 
 

Um estudo baseado em corpus constituído das autotraduções

Sergeant Getulio e An Invincible Memory, de João Ubaldo Ribeiro


Diva Cardoso de Camargo (UNESP)


A análise de autotraduções e a investigação do estilo dos autotradutores nos textos alvo ficaram à margem dos estudos da tradução e da literatura comparada.  Contudo, a tradição de autotraduções mostra ter sido uma prática comum no mundo medieval multilíngue, e que, nas últimas décadas, tem ressurgido um interesse crescente pelo exame de textos autotraduzidos (Hokenson, Munson, 2007). Por seu turno, mesmo com os estudos linguísticos e literários não tendo chegado a um consenso sobre a concepção de estilo, já se estabeleceu na estilometria um conceito básico de estilo apoiado em medidas estatísticas.  Na estilística computacional, a noção de estilo é vista como um fenômeno quantitativo, destacando-se as investigações de Leech e Short (1981) sobre estilística forense, e de Biber (1985) sobre análise de características múltiplas.  Butler (1985) descreve estudos que usam a estatística para observar aspectos estilísticos de textos, autores e gêneros.  Embora o estudo de Glover (1996) tenha apontado questões ligadas a inconsistências estilísticas detectadas automaticamente, a pesquisadora defende a viabilidade de testes computacionais que descrevam traços estilísticos.  Embora critique as limitações das medidas de variação estilística, Karlgren (2000) mostra que podem ser usadas adequadamente para distinguir categorias de gêneros textuais, mas os resultados dependem de seleção prévia e rigorosa.  Já Munday (1997), de um lado, aponta a desvantagem de recorrer a estatísticas de frequência de palavras; de outro, enfatiza ser possível, a partir do exame de corpora, desenvolver um perfil estilístico amplo e sistemático.  Nos estudos da tradução baseados em corpus, destacam-se as investigações de Baker (2000) que concebe estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa no texto traduzido por meio de uma variedade de características lingüísticas referentes a padrões preferenciais e recorrentes de escolhas lexicais, observáveis com auxílio de programa computacional.  Dentro dessa perspectiva, este trabalho teve por objetivo analisar o estilo de João Ubaldo Ribeiro enquanto autotradutor e também compará-lo ao seu estilo enquanto autor, por meio de um corpus paralelo formado pelas obras Sargento Getúlio (SaG) (1971)/Sergeant Getulio (SeG) (1971) e Viva o Povo Brasileiro (VPB) (1984)/An Invincible Memory (AIM) (1989). O primeiro romance retrata a oralidade do sertanejo e apresenta a riqueza de valores socioculturais de um povo, para quem as “leis do sertão” não precisam ser escritas (Aragão, 1988).  No segundo romance, destaca-se a forte presença da cultura popular, com manifestações das religiões afro-brasileiras bem como expressões variadas e fragmentos de “língua de preto” (Pasta Júnior, 2002).  Quanto à fundamentação teórica, a pesquisa apoia-se na abordagem interdisciplinar proposta por Camargo (2005, 2007) envolvendo os estudos de tradução baseados em corpus (Baker, 1996, 2000) e a lingüística de corpus (Berber Sardinha, 2004). A investigação foi desenvolvida semi-automaticamente, por meio de uma combinação de análises com o auxílio do programa WordSmith Tools e de análises manuais.  Com a ferramenta WordList foram geradas listas de palavras por freqüência e listas de estatísticas para os dois pares de obras. Foram observadas variações mais altas ou mais baixas de formas (vocábulos: types) e itens (ocorrências: tokens) por meio da comparação dos resultados da razão forma/item padronizada nas quatro obras.  Com a KeyWord foram geradas listas de palavras-chave dos textos fonte, as quais foram filtradas em relação ao corpus de referência de língua portuguesa do NILC. As palavras de maior chavicidade foram, então, submetidas à ferramenta Concord, para observar tais palavras (nódulos) no cotexto de uso.  Após o alinhamento dos pares de obras com o aplicativo View & Aligner e ajustes manuais, foram identificados traços que podem ser considerados como características de normalização, a fim de realizar um exame mais completo de padrões estilísticos do autotradutor.  Quanto aos resultados, a comparação da forma/item padronizada registrada para o autotradutor em SeG (38,64) e AIM (44,34) em relação aos originais (respectivamente 42,33 e 49,07) indica que, enquanto participante como auatotradutor, Ubaldo Ribeiro revela um padrão estilístico distintivo e preferencial que apresenta menor variação lexical.  Em contraste, na situação de participante como autor, Ubaldo Ribeiro mostra padrões estilísticos de maior diversidade vocabular. Ao considerar a forma padronizada como uma indicação do uso que o autotradutor faz da linguagem, pode-se destacar, apesar da influência de possíveis variáveis, que a diferença menor registrada para SeG (3,69) e acentuadamente mais baixa para AIM (4,73) constituem marcas significativas da utilização dos padrões estilísticos próprios do tradutor/autor, revelando o impacto da extensão dessas diferenças em contraste com o autor, nos dois pares de obras.  Por sua vez, entendendo que os índices mais elevados de chavicidade revelam a temática das obras, a análise do primeiro romance revelou que a maioria das palavras-chave está ligada a elementos da cultura social, a seguir a palavras-chave relacionadas à ecologia e, depois, a referentes da cultura material.  As observações efetuadas em SaG parecem confirmar a opinião dos críticos literários sobre a forte presença do homem dentro de um espaço geográfico e contexto sociocultural específicos.  Já em VPB, os maiores índices de chavicidade reportam à cultura material, seguidos de aspectos da cultura social, e, depois, de elementos da cultura ideológica.  Esses dados também estão em consonância com a fortuna crítica do autor, que destaca as  características sociais e humanistas da obra.  Quanto a traços de normalização, ao contrário do esperado, as duas autotraduções mostram o uso fluente do inglês americano coloquial, quase não recorrendo a empréstimos nem à técnica da naturalização para traduzir topônimos.  Este trabalho procurou mostrar que uma investigação do estilo do autotradutor é, em princípio, exeqüível e interessante.  Em sendo a (auto)tradução uma atividade criadora e criativa, então, em algumas partes ao longo do novo texto o (auto)tradutor deixa suas marcas distintivas e preferenciais.  A dificuldade, contudo, reside no desenvolvimento de metodologias coerentes para investigar tais marcas, e também distinguir o que é próprio de cada um dos dois “autores”, dos dois textos, das duas línguas/culturas envolvidas.


PALAVRAS-CHAVE: Estilo do autotradutor, Normalização, Estudos da tradução baseados em corpus, João Ubaldo Ribeiro

 

Resumo