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O que é culinária brasileira para o norte-americano? Um estudo baseado em linguística de corpus


Rozane Rodrigues Rebechi (USP-PG)


A culinária de uma sociedade vai muito além de escolhas alimentares aleatórias. A cozinha estabelece uma identidade entre os seres humanos e a natureza, e é portadora de significados simbólicos (LÉVI-STRAUSS, 2007). E como traço cultural tão forte, parece importante analisar como esse aspecto da cultura brasileira tem sido levado para o estrangeiro.

O interesse do norte-americano (e, naturalmente, de vários outros povos) pela culinária brasileira é de conhecimento de todos e pode ser comprovado por meio de uma simples pesquisa na Internet com palavras de busca, em língua inglesa, que remetam ao tema, ou mesmo levando em consideração o número de churrascarias de redes brasileiras que, muitas vezes, possuem mais filiais nos Estados Unidos do que dentro do Brasil. Mas será que o que é tipicamente brasileiro para o norte-americano coincide com o que é “típico” para o povo brasileiro?

Como parte de um projeto de mestrado que tem como objetivo analisar a imagem do brasileiro construída a partir do olhar do norte-americano em livros de receitas brasileiras publicados em inglês, este trabalho visa identificar os ingredientes e pratos “levados” para a cultura norte-americana como sendo representativos da culinária típica brasileira, compará-los aos ingredientes e pratos mais citados em livros de culinária brasileira escritos em português do Brasil, e verificar o que é comum entre eles. Para atingir esse objetivo, foi compilado um corpus comparável bilíngüe constituído de um corpus formado por oito livros de culinária brasileira escritos originalmente em inglês, por norte-americanos, e um corpus de livros de receitas brasileiras escritos em português do Brasil.

Para se adequar aos critérios subjacentes à Linguística de Corpus, que se ocupa do que é observado na linguagem autêntica, e não do que é potencialmente possível (STUBBS, 1998), esse material impresso foi digitalizado, a fim de ser explorado com a ajuda de ferramenta computacional. Cada receita do corpus foi acrescida de cabeçalho, criado especialmente para servir aos propósitos desta pesquisa. Além disso, os títulos e as receitas propriamente ditas foram delimitados por etiquetas, possibilitando a pesquisa por partes específicas do texto.

Para proceder à análise semi-automática do corpus, foram geradas as listas de palavras de cada corpus, utilizando a ferramenta WordSmith Tools 5.0 (SCOTT, 2007). A fim de fazer o levantamento dos ingredientes mais recorrentes nos livros em inglês, a lista de palavras do corpus em inglês (para analisar apenas os ingredientes de cada livro, foram feitos os ajustes necessários) foi comparada à lista de um corpus de referência. Para salientar apenas o que é típico da culinária brasileira, foi utilizado como referência um corpus de culinária geral, constituído por receitas escritas, originalmente, em língua inglesa. O resultado dessa comparação levou a listas de palavras-chave de cada livro analisado.

Por meio da função database do WordSmith Tools 5.0, essas oito listas foram comparadas entre si, gerando uma lista de palavras chave-chave, ou seja, palavras recorrentes em um determinado número de livros (para a presente pesquisa, para ser considerada chave-chave, a palavra deveria ser chave em um mínimo de três dos oito livros). O resultado desse levantamento mostrou que os dez ingredientes mais recorrentes nos livros em inglês são: rice, beans, coconut, hearts (of palm), shrimp, carne (de sol; seca), cilantro, dendê, farofa, (collard) greens. 

O mesmo processo foi utilizado para explorar o corpus em português. O resultado mostrou que os dez ingredientes mais recorrentes nessas são: alho, cebola, cheiro-verde, coco, leite, lingüiça, mandioca, óleo, pimenta-de-cheiro e pimentão.

Em uma etapa seguinte, foi feito o levantamento das receitas mais citadas nos dois corpora. Para isso, foi utilizada a função Concord, usando, como palavra de busca, a etiqueta correspondente ao título das receitas. As linhas de concordância mostraram que as receitas mais mencionadas no corpus em inglês (para citar apenas as cinco mais freqüentes) são: molho (4,1% do total de receitas); sopa (3,5%); salada (3,2%); frango (2,2%); e camarão (2,1%). Quanto ao corpus em português, as receitas que mais aparecem nos livros são: arroz (5,8%); farofa (3,4%); sopa (2,2%); peixe (1,8%); e pudim (doce) (1,6%).

Por meio desse resultado parcial, foi possível perceber que os pratos e os ingredientes mais mencionados nas receitas escritas originalmente em inglês nem sempre coincidem com os mais mencionados nas receitas em português. A partir dessa constatação, foi feita uma análise dos textos introdutórios às receitas e verificou-se que os autores realmente deram preferência a certos pratos, trocaram ingredientes e deixaram de lado receitas cujos ingredientes dificilmente podem ser encontrados no mercado norte-americano.

Isso vem comprovar que, mesmo tencionando levar à cultura norte-americana o que é “típico” de outra cultura, esses autores optaram pelo que é mais familiar, “normal”, na cultura de chegada (cf. FERNANDEZ-ARMESTO). De certa forma, o norte-americano, representado, aqui, pelos autores dos livros, fazem uma “domesticação” (VENUTI, 1999) da cultura culinária brasileira, para que seja ‘digerida’ com mais facilidade na cultura norte-americana.


Palavras-chave: culinária; cozinha brasileira; Linguística de Corpus; típico; norte-americano.


 

Resumo